Gosto de refletir sobre os paradigmas e estereótipos com os quais me deparo no dia a dia. Conduzindo processos e ações de desenvolvimento, é muito comum a caracterização das interações que RH, e outras funções de apoio, estabelecem ou definem como sendo o próprio papel, como relações de “prestação de serviços” para “clientes-internos” – o que tem incomodado.
Uma prestação de serviço prevê um acordo comercial e investimentos do cliente e do fornecedor antes, durante e depois. Antes, um fornecedor pesquisa, estuda, investiga, compara, cria, conversa, diagnostica, e desenha algo para o cliente. Durante, na condução do processo, há esforços, julgamentos, o assumir riscos, revisões, recriações, etc. Após, há o compromisso de ter realizado o melhor, ciente de que sempre haverá novas ações e contextos.
Na prestação de serviços no interior das organizações não há um acordo comercial ou uma ‘autoridade’ para avaliar a qualidade do que foi feito, não há o que punir ou outro fornecedor para disputar o contrato. O cliente interno não descarta o fornecedor. Nas pseudorrelações entre o prestador de serviço interno e seu pseudocliente há uma falsa pretensão de que alguém está ‘a meu serviço’ ou que ‘eu devo prestar serviços’ a alguém. Se o meu trabalho estiver a serviço de um outro na organização, isso criará relações assimétricas.
Pode ser que essa tese não seja considerada importante. Afinal, a ideia de ‘prestar serviços internos’ para ‘clientes-internos’ está tão difundida que talvez não merecesse nova reflexão. O que vemos, entretanto, é que o uso desses conceitos cria dicotomias e afeta a cultura organizacional.
Parece haver um consenso de que a organização representa um todo, um sistema orientado para produzir, ‘servir’, atender, alcançar seus objetivos econômicos, sociais e, sendo assim, o ‘cliente’ é sempre externo. Como um sistema complexo, as funções da organização se interdependem e ‘olham’ para fora. O propósito de servir está ‘lá fora’. O que quer que se faça de dentro da organização, deve visar o propósito de continuar servindo, adaptando-se mais e mais, criando novas formas de servir e garantindo a continuidade, a fidelidade e o interesse pelo que a organização faz e poderá fazer.
Nessa linha de raciocínio, uma pessoa, uma área ou um departamento não serve a um cliente interno. Juntos, eles servem ao ‘ambiente externo’. Como cada pessoa que trabalha na organização tem uma função; como cada função está dentro de uma função maior; e como cada função maior faz parte de um desenho organizacional orientado para realizar o propósito, todas essas funções ‘olham’ para o ambiente externo, dominam um conhecimento, uma expertise e assessoram as demais funções internas para um desempenho cada vez mais crescente. Não faz sentido, então, perguntar: ‘como posso servir meu cliente interno? ’, até porque não há cliente interno. Essa não é melhor pergunta, pois define uma postura passiva e sem autoridade em relação ao domínio do conhecimento e do porquê da existência de tal função. Sem o reconhecimento da autoridade de uma função, como RH, não há consequência para uma outra área não aceitar e aplicar todas as recomendações, práticas e serviços disponíveis.
O departamento de manutenção não existe para atender a produção, a manutenção existe para colaborar com o sistema produtivo, por meio de seu know-how. A produção não existe para atender ao comercial. A produção existe para colaborar com o portfólio da empresa e para servir ao ambiente externo. As finanças também não existem isoladamente, existem para dar o melhor equilíbrio possível entre empreender e sobreviver. O comercial não é a ‘estrela’ da organização, faz parte do sistema que ‘olha para fora’ e depende das capacidades internas.
Um dos maiores riscos do ‘clientelismo interno’ é a perda do sentimento de ‘pertencer a um todo’. Uma das manifestações exemplares é o do ‘bode-expiatório’. No momento em que – conscientes ou não – buscamos um ‘bode-expiatório’ interno para responsabilizar sobre o problema, a falha ou o fracasso, perdemos a noção de unidade. Colocamos em risco o potencial da aprendizagem, da tolerância e da solidariedade, além de reforçar o ‘poder’.
A cultura organizacional se mede na prática das interações, nas relações, no modo como expressamos os valores e os praticamos. Aquilo que é ‘visto’ é a expressão da cultura. Evoluir e amadurecer a cultura organizacional envolve clareza de princípios e persistência da prática.
Durante os períodos de crise, a força da cultura organizacional pode se revelar uma aliada poderosa. Na busca de soluções engenhosas, não vamos perguntar ‘quem vai nos servir’, não vamos olhar para os lados e perguntar a respeito do meu fornecedor. Porque, internamente, eu não sou fornecedor e nem cliente de ninguém. Eu pertenço ou não pertenço ao todo. Dos pés ao cérebro. É só.
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