Treinamento: De consultoria interna para consultoria de performance

agosto 15, 2016

O tema está focado aqui para treinamento. Mas é difícil abordá-lo sem falar sobre o profissional de Recursos Humanos e sua responsabilidade neste processo. Na última década, um dos temas polêmicos tem sido a ‘consultoria interna’. Afinal, o que a caracteriza? É uma atribuição adequada? Representa o que de melhor se pode fazer?

O papel de consultoria interna pode não representar o se pode fazer em RH. Onde e como buscar referenciais para uma ação? Segundo Elliott Jaques, as ‘organizações são sistemas estruturados para conseguir que determinado trabalho seja alcançado’. As organizações são também sistemas que empregam o trabalho humano (a capacidade para produzir julgamentos), e normalmente se estruturam com base no princípio de liderança. Embora diferentes modismos tenham surgido nos 20 últimos anos sobre o que é uma organização (clube, hospital, orquestra, centro de aprendizagem?) e tenhamos vivido os efeitos da reengenharia, o que ainda prevalece é que as pessoas organizações são responsáveis por resultados. Em algum momento, alguém (ou um grupo de acionistas) tornou outro alguém responsável por um empreendimento. E este alguém, para conseguir seus objetivos, atribuiu novas responsabilidades em forma de cascata. Esse modelo parece ser universal e perene. Não dá para lidar com a complexidade sem uma estrutura que permita que diferentes funções, em variados níveis, sejam administradas. Diferentes outputs são produzidos continuamente através de processos verticais e de alinhamentos horizontais nas diversas cadeias que compõem o trabalho a ser gerenciado.

Quais são, então, os requisitos de tal sistema? Jaques interpreta o princípio básico das organizações como ‘estabelecer um sistema gerencial em que o trabalho possa ser feito com efetividade impar na produção de bens e serviços para satisfazer as necessidades da sociedade. E fazê-lo de tal maneira que torna possível às pessoas exercerem sua plena capacidade, e trabalhar sob condições que fortalecem as fronteiras da confiança mútua.’1 Alcançar esta condição não é apenas uma responsabilidade executiva mas uma questão moral.

Se esta visão for motivadora, alguns conceitos e princípios devem ser levados em conta para esse sistema gerencial, em geral conceitos e princípios interligados:

  • A natureza do trabalho humano, da tomada de decisão, e solução de problemas;
  • A natureza da capacidade humana para o trabalho, incluindo a capacidade para lidar com a complexidade;
  • O encontro ideal entre a complexidade da informação, os níveis da organização e os níveis do funcionamento mental;
  • A natureza do desenvolvimento individual e o crescimento da capacidade das pessoas;
  • Os princípios de reconhecimento e compensação justos pelo trabalho;
  • A natureza da liderança;
  • Os princípios de geração de competências.

Antes de falar em pessoas, antes de qualquer ação, abordamos os princípios de gestão, de práticas gerenciais. Elas constituem o pano de fundo para a questão da consultoria e, particularmente, do treinamento. Sem isto, as ações não terão muito sentido. Com esse pano de fundo, a questão da consultoria interna pode perder sentido, pois o profissional não se torna consultor e, sim, viabilizador dos princípios gerenciais. Passa então a ter uma intenção explícita e compartilhada de conseguir um ambiente voltado para a performance e realização do potencial humano. Você pode chamar isto de consultoria de performance, como existe uma tendência, modismo. Os profissionais de RH não devem se enxergar como ‘consultores’. Eles são parte da organização, compartilham valores, princípios, e são atores nos processos internos; são igualmente ‘cobrados’ por determinados resultados e por excelência no que devem fazer. Sem dúvida que a noção de consultoria procura captar o papel em sua dimensão qualitativa. Mas acho que essa leitura deve ser revista.

De qualquer maneira, a questão se impõe. Nos sistemas gerenciais orientados para a performance e o pleno uso da capacidade das pessoas, o ‘prestar serviço interno’ ainda se mantém. O sistema gerencial deve ter clareza sobre as ‘autoridades’ delegadas e as práticas gerenciais necessárias. Há empresas que afirmam ser responsabilidade gerencial a condução de pessoas, equipes. Mas, ao se observar a ‘autoridade’ delegada, verifica-se que elas não apóiam a responsabilidade esperada. Jaques é claro quando fala das responsabilidades gerenciais: primeiro, um gerente só é de fato um gerente quando é responsável pelo output de seus liderados. As coisas ora se invertem. Se um gerente é responsável pelos resultados de seus liderados, pode-se criar um ambiente de forte demanda para ações de RH. Mas isso, sozinho, não é suficiente.

Segundo aspecto: um gerente só é de fato gerente quando tem também autonomia e responsabilidades com base em princípios, para questões óbvias: compor uma equipe de trabalho (ter direito a veto), afastar alguém de sua equipe, avaliar e acompanhar a performance, praticar o reconhecimento por mérito, praticar a delegação. Digo praticar, isto é, estar investido da autoridade de, e não sugerir, ou consultar, pois isso tira a autoridade e sem ela não há reconhecimento de liderança.

É importante um esclarecimento com relação ao termo autoridade. No Brasil, infelizmente, a palavra traz inúmeras interpretações. Autoridade vem de ‘author’, isto é, ser autor, ter a condição de autoria. Dentro de princípios de performance e uso pleno da capacidade, a equipe de alta performance é um produto (autoria) da qualidade da gestão. E a liderança tem aí uma contribuição essencial.

Terceiro ponto. As práticas de liderança são dez: trabalho em equipe de duas mãos, definição de contextos, planejamento, atribuição de tarefas, avaliação da efetividade pessoal, revisão de méritos, coaching, seleção e indução, afastamento e demissão, e melhoria contínua. Nesse contexto, se quiser continuar utilizando o termo ‘consultoria’, apresento aqui dez áreas de oportunidade para esta prática.

O treinamento

Neste contexto, onde entra o treinamento? O que é treinamento?

O treinamento é uma ferramenta gerencial, voltado para acrescentar ou desenvolver uma habilidade, um comportamento, que pode ser aprendido (está ao alcance das pessoas a serem treinadas), e que irá reverter – ou contribuir para tal – uma situação de performance inadequada claramente definida. Se ficou claro, treinamento acontece quando tenho um problema definido (consigo medir as evidências de um problema e sei quais as suas causas, por isso, quero um treinamento para reverter). Assim, será possível uma intervenção e reversão de uma situação.

De quem é o problema de treinamento?

Quem tem um problema de treinamento é o gerente! Ele é o responsável pelo output de seus liderados. Ele deseja algum tipo de apoio para reverter uma situação de performance inadequada. Nesse contexto (existem muitos outros), o termo consultoria interna também é utilizado. Mas penso que deva ser importante enfatizar que se faz consultoria interna centrada naqueles princípios destacados. Assim, essa consultoria interna não se limita a prestar um serviço, quer desenvolver a capacidade e o desejo dos gerentes de se tornar responsáveis pelo output de seus liderados. E isto não é apenas prestar serviço. Passa ainda por influenciar as práticas organizacionais, ajudar a empresa a pensar seus modelos, visão de trabalho, pessoas, etc., para somente então, ‘entregar’ um serviço específico, que só tem sentido com uma visão mais ampla do que se está entregando e por qual motivo.

Medindo os resultados

Em seu livro ‘Evaluating Training Programs’, Kirkpatrick procura definir passos para avaliar os treinamentos. Foca especificamente a ação treinadora e define ‘os quatro níveis’: reação, aprendizagem, comportamento e resultados. Nada muito desconhecido da prática. A reação se mede sobre como as pessoas ‘sentiram’ o treinamento – satisfação com o processo. A aprendizagem é definida pela extensão pela qual os participantes mudaram de atitude, aumentaram seus conhecimentos e habilidades, pelo fato de participarem do programa. Comportamento é definido pela extensão pela qual houve mudança no comportamento, acontecido pelo fato de se ter participado no treinamento. Esta mudança no comportamento é um dos pontos críticos. Kirkpatrick destaca que para haver mudança no comportamento, quatro condições são necessárias: a pessoa precisa desejar a mudança, precisa saber o quê e como fazer algo, precisa trabalhar no ambiente e clima corretos, e precisa ser ‘recompensada’ pela mudança. Independentemente de certa visão behaviorista do processo, destaco a terceira condição – ‘trabalhar no ambiente e clima corretos’ como uma das condições importantes para a mudança. Ora, ambiente e clima adequados são responsabilidades gerenciais. Se o clima é negativo, ou se o treinando não tem um contexto adequado para aplicar o que foi ‘aprender’ com o treinamento, então temos um outro problema, o da eficiência gerencial. O quarto critério de avaliação, resultados, é definido como as conseqüências finais resultantes do programa, tais como aumento na produção, diminuição dos acidentes, queda nos custos, e mesmo aumento em vendas. Sem dúvida, esta é uma visão bastante pretensiosa do poder do treinamento.

Como podemos associar aumento de vendas a um programa de treinamento? De um lado, Kirkpatrick fala sobre o que acontece dentro dos limites da ação de treinamento (curso ou aula, com queiram chamar). Por outro lado, aumentar as vendas está além do controle dos participantes. Eles não têm controle sobre todas as variáveis que afetam o aumento das vendas. Desde as mais intangíveis como concorrência, clima, mudança de estratégia do concorrente, mudança de produto do concorrente, até as mais próximas, como ter ou não certos recursos financeiros imediatamente disponíveis para uma promoção, uma ação contingencial – os recursos necessários dependem de uma decisão gerencial de outro nível. Desta forma, Kirkpatrick comete um erro conceitual ao depositar no treinamento tal responsabilidade. E me parece tanto injusto como pretensioso atribuir tal responsabilidade ao treinamento . Vou explicar o motivo.

Primeiro, o treinamento tem seu maior poder em gerar conhecimentos e comportamentos, tem até o poder de motivar (dar novos contextos para a aplicação do que se aprendeu). Contudo, isto acontece dentro de limites (quatro paredes, por exemplo). Segundo, para que as mudanças aconteçam com maior eficiência, tanto os objetivos como os recursos para a mudança devem estar sob o controle do treinando. Terceiro, a gerência é a maior interessada no desenvolvimento dos conhecimentos e habilidades dos seus liderados e estes conhecimentos e habilidades devem ser vistos como novos recursos que se está disponibilizando para a gestão e solução de problemas. Assim, é responsabilidade da gerência garantir contextos e condições para que os novos comportamentos sejam utilizados como recursos. Treinamento é investimento, podendo ser bem ou mal utilizado.

Transcendendo este modelo de Kirkpatrick, encaro o treinamento como um recurso gerencial e, como tal, deve ser visto como uma ação exclusivamente voltada para desenvolver novos recursos. A responsabilidade da gestão e validação do novo recurso são da gerência. Claro, isto de uma maneira compartilhada, dentro do espírito cliente-fornecedor interno

Vejo, então, algumas fases para uma correta avaliação das ações de treinamento (Fig. 1).

Fase 1 – Avaliação da situação atual – ou avaliação diagnóstica

Objetivo: compreender o problema, suas evidências comportamentais e suas causas (falta de conhecimento, falta de habilidade, etc.). Esta fase deve ter uma mensuração de modo que os envolvidos saibam o ‘tamanho’ do problema e suas implicações. Apenas a percepção de que algo não está bem pode ser insuficiente.

Fase 2 – Desenho da intervenção

Tendo-se definido que a solução pode ser desenvolvida por um treinamento, desenha-se uma intervenção, dentro dos princípios andragógicos de ensino. Estes princípios requerem o envolvimento dos participantes no problema, a discussão de problemas reais, a produção de estratégias de aplicação por parte dos participantes, técnicas participativas de treinamento, reflexão profunda sobre as causas dos problemas e sobre as condições que o fazem perdurar, etc. O desenho do treinamento deve ser validado com a gerência e participantes se possível.

Um ponto importante nesta fase é a definição de objetivos do treinamento. Parte da frustração com relação a não se perceber resultados de treinamento é que o treinador acaba aceitando definições de objetivos (e conseqüentemente de responsabilidades do treinamento) por metas inalcansáveis. Por exemplo, aumentar as vendas em 20%. Este objetivo não é do treinamento. É um objetivo da gerência. A gerência quer aumento de 20% nas vendas. Pequena parte desta contribuição é desenvolver alguns conhecimentos e habilidades. Mas a gestão delas, em que contexto serão utilizadas, depende da visão e capacidade gerencial.

Fase 3 – Condução da intervenção

Esta fase deve ser caracterizada pelo que chamamos de avaliação de processo de aprendizagem. Dentro de um espírito investigativo de causas e solução de problemas, o instrutor (como queiram chamar), deve cuidar tanto da aprendizagem como do processo que gera a aprendizagem, usando os critérios andragógicos como referência.

Fase 4 – Avaliação de reação, aprendizagem e comportamento

Aqui entram os critérios de Kirkpatrick.

Fase 5 – Avaliação de resultados

A avaliação de resultados deveria ser um hábito gerencial, isto é, o maior interessado pelos resultados deveria ser o gerente e a equipe treinada. Para isto, as avaliações da nova situação devem ser realizadas para se comparar com a situação inicial. E um novo ciclo se inicia, podendo gerar novas demandas de treinamento ou outras ações. Estas avaliações podem e devem ter uma participação ativa do profissional de RH, junto ao seu cliente, procurando participar do entendimento do porque os resultados apareceram total ou parcialmente. E deve ser interesse do grupo compreender os limitadores e tentar controlá-los.

Este ciclo caracteriza uma espécie de ‘pesquisa-ação’ por parte do profissional. Não vejo como especificamente de consultoria, já que o profissional de RH é parte da cultura e está comprometido com ela.

Afinal, os resultados de treinamento são mensuráveis?

Talvez esta seja uma discussão sem um fim muito claro. Em última análise, podemos medir aquilo que acontece ‘dentro do ambiente direto de treinamento’ (sala de aula, por exemplo), ou dentro ‘da cabeça do treinando’, isto é, os conhecimentos adquiridos, as habilidades demonstradas, um entendimento mais amplo de algum conceito ou contexto. Mas estes produtos serão alocados em contextos muito mais abrangentes do que o dos treinamentos. As variáveis que operam neste contexto mais abrangente não estão sob o controle do treinamento.

Parte da dificuldade de se medir resultados, sem dúvida, vem de se aceitar objetivos acima do que um treinamento é capaz de produzir. Se trabalharmos com objetivos cujos resultados estejam sob controle do treinando, e cujos recursos que permitem a utilização dos novos conhecimentos estejam disponíveis, então podemos medir resultados. E quando digo recursos não penso somente em dinheiro, equipamentos, penso também no estilo de liderança, no espírito de equipe, nos valores que irão apreender os novos conhecimentos e tentar transformá-los em resultados.

Ainda assim, quem deve medir resultado de treinamento é a gerência, afinal é ela quem tem uma necessidade, uma performance para ser melhorada, os recursos, as metas de produção e de vendas. Portanto, o treinamento, visto como uma “ferramenta’ gerencial, deve ser tratado dentro da filosofia custo – benefício e como tal ser avaliado. Mas é de interesse tanto de RH como da gerência, que essa ferramenta seja utilizada com a máxima eficiência. Então, a avaliação é de interesse de ambos. E sempre haverá um ‘quê’ de percepção nesta avaliação, seja qual for a qualidade da relação entre cliente e fornecedor interno.

Referências Bibliográficas

1 Jaques, Elliott – Requisite Organization – Cason&Hall, 1998 (segunda edição)
2 Kirkpatrick, D – Evaluating training programs. Berrett-Koehler. 1996


Nota: Artigo publicado originalmente no antigo site do Instituto Pieron.

 

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