Recursos Humanos: muito além de prestar serviços

outubro 15, 2020

Entre meados e final dos anos oitenta muito se discutia sobre qual deveria ser o papel de Recursos Humanos dentro das organizações. A atividade de RH começava a ser questionada pois o papel do gestor incluía o de “gerente de Recursos Humanos”. Ora, se o gestor é o gerente de RH, para quê então um departamento de Recursos Humanos? No limite do debate, aventava-se até a extinção da atividade. De fato, até hoje algumas organizações parecem procurar o melhor título para a diretoria ou departamento de RH.

Estas discussões atravessaram as décadas. No início dos anos noventa, Hamel e Prahalad1 introduziram novos conceitos, dentre os quais o de ‘core competencies’ (competências essenciais)e o consequente desdobramento no incentivo à terceirização mais intensa de atividades não ligadas diretamente às competências da organização. Nesta ocasião, uma das principais mudanças em RH foi a introdução e intensificação do conceito de ‘consultoria interna’ ou papel do Business Partner de RH, trazendo a reboque a ideia de RH como ‘prestador de serviços’.

Se é que há algum encadeamento histórico, nos anos oitenta, com a revolução da qualidade, o cliente ficou ‘reificado’. Deram-se início as inflamadas discussões sobre ‘estamos, de fato, entendendo as necessidades dos clientes?’ afinal ‘o cliente sempre tem razão!’. O extremo desta última proposição chegou a considerar que o cliente (interno) poderia optar por ‘comprar’ ou não os serviços de RH.

Fato é que o espírito de consultoria interna permeou os anos noventa e a atividade de RH não se extinguiu, apesar de a estrutura continuar parecida. Os clientes internos continuam ‘cativos’ isto é, não compram serviços externos autonomamente. E viramos o século falando de consultoria interna e RH como prestador de serviços. Essa é uma ideia que merece alguma atenção, pois não nos parece fazer muito sentido. Para que toda estrutura interna se a necessidade é definida pelo cliente interno?

O foco em prestação de serviços descaracteriza o papel de RH por diferentes motivos. Um deles é que a atividade de RH deve representar a implementação, a transformação e o cultivo de uma cultura (nova ou não). Esta cultura é guiada por valores e é definida pelo primeiro executivo ou executiva da companhia que, entre outras funções, é o(a) responsável pela cultura desejada na organização. Assim, RH deveria assumir o papel de quem dissemina, monitora e intervém no ambiente de trabalho em direção a cultura desejada, ou seja, assumindo um papel ativo na busca da consolidação da prática de valores.

Há hoje em RH a prática da consultoria interna ou a figura do Business Partner de RH e, em paralelo, uma busca de um “RH estratégico”. Estratégico é, sem dúvida, uma palavra bastante desgastada. O que se entende por um RH estratégico?

Para criarmos um referencial que privilegie o diálogo precisamos de um ponto de partida comum. Por exemplo, Elliott Jaques considera que uma unidade de negócios completa possui cinco níveis hierárquicos máximos e necessários para a condução do negócio. No quinto nível, a Intenção Estratégica, está o responsável pela estratégia e resultados da organização. No quarto nível, o Desenvolvimento Estratégico, estão os responsáveis pelo desenvolvimento estratégico, inovação ou definição de políticas e modelos organizacionais. Nesse nível está o RH, que deve assumir as seguintes atribuições:

  • Desenvolver os requerimentos de pessoal para um plano de sete anos para a unidade de negócios;
  • Considerar os desenvolvimentos organizacionais necessários com base na intenção estratégica;
  • Dar condições para o desenvolvimento dos sistemas de RH: avaliação de eficácia pessoal, capacitação, análise de potencial, tutoria, sistemas de remuneração, relações gerenciais, entre outros;
  • Controlar a reserva de talentos da unidade de negócios;
  • Fazer a manutenção do contato com a política de desenvolvimento, no que se refere às suas competências (em caso de corporações);
  • Recomendar políticas que possam fortalecer a eficácia da liderança da unidade de negócios e promover um clima construtivo;
  • Assessorar o presidente sobre a competência técnica e potencial dos recursos humanos do nível 3, no nível Prática, no qual estão os futuros sucessores estratégicos que poderão trabalhar com a presidência.

Estas questões demandam de RH muito mais do que competências em ‘serviços’. Na realidade, as competências em serviços apenas caracterizarão um RH voltado para a ‘solução de problemas’ os quais, obviamente, estarão girando em torno de ‘como treinar melhor o pessoal’, ‘como resolver questões de reenquadramento salarial’, ‘como melhorar o trabalho em equipe’, ‘como selecionar eficientemente um novo colaborador’, ‘como fazer a avaliação de desempenho’, entre outros.

Numa perspectiva efetivamente estratégica o responsável por RH, no nível 4 (Desenvolvimento Estratégico), colabora com outros gerentes gerais e diretores com o objetivo de manter a gestão e a liderança inseridas na política de RH e na cultura desejada. Esse amplo escopo gera o ambiente favorável para uma ação de RH voltada para assessorar altos níveis de performance (nível 3 – Prática). O parceiros de RH (consultores internos?, não nos parece) colaboram com os gerentes gerais na análise e planejamento dos requerimentos e desenvolvimentos vinculados ao RH na fábrica, filial e departamento. Essa assistência envolverá:

  • Planejamento das mudanças organizacionais requeridas pelo fluxo de trabalho ou tecnologia de produção;
  • Planos de recrutamento, capacitação, transferência ou perda de pessoal a fim de satisfazer os requerimentos mutáveis neste escopo (projetos que consideram entre um e dois anos futuros);
  • Supervisão e coordenação das práticas de RH dos gerentes/pares do nível 3, e da repercussão de tais práticas no clima social e nas relações com os sindicatos;
  • Manutenção do contato com especialistas de RH da unidade de negócio com relação às políticas da corporação sobre os recursos humanos;
  • Supervisão do clima social da fábrica, filial ou departamento, e recomendação de qualquer mudança de políticas ou práticas para melhorar o clima organizacional.

Esta é uma abordagem sistêmica e prevê ‘autoridade’ de ação de RH. Um profissional da área uma vez afirmou: ‘se o cliente não quiser não farei’. Isto denota uma perspectiva muito pequena. Melhor seria influenciar o gestor (não cliente) na direção da cultura desejada e verificar porque não existe uma prática da cultura desejada, se este for o caso. E ainda dar o apoio necessário para que ocorram as transformações necessárias. Se estas práticas não acontecerem, a atividade se resumirá ao nível 2 (Serviço). Porém, isto poderá ser feito também externamente, subcontratando-se os serviços.

Afinal, quem detém o conhecimento em RH? Há especialistas e generalistas. E esta discussão nos remete novamente à questão sobre se atuamos no nível Serviço ou não. Atividades em prestação de serviços requerem domínio profundo de conhecimento. Mas o valor agregado ainda está na solução de problemas. Generalistas em RH? O que isso quer dizer? Que falamos uma linguagem de negócios? Que focamos o ‘todo’? Qual o tamanho do todo? Que somos bons estrategistas? Que conhecemos o negócio do cliente? Ora, isto deveria ser ‘default’ em se tratando de profissionais que alocam seus recursos pessoais para o trabalho com organizações. Temos, sim, que entender que questões gerais e amplas, tais como, gerenciamento, modelos organizacionais, poder, política, processos de tomada de decisão, planejamento, e questões ligadas ao tema gestão, estão muito acima da questão de RH como prestador de serviços.

RH deve ter um papel de influência, uma autoridade definida internamente, uma influência quase normativa nas organizações. E conseguirá isto através da competência de obter o apoio do grupo de gestão em direção à cultura desejada. Este é um desafio, não só brasileiro. Afinal, nas últimas décadas, as grandes transformações na cultura gerencial ou organizacional pelo mundo afora foram conduzidas pelos movimentos do marketing, dos conceitos de gestão total, engenharia e qualidade, e da tecnologia da informação. Terá RH liderado alguma revolução cultural? A postura de “prestador de serviços” obviamente limita esta perspectiva de “criar alguma revolução”. Se presto serviços posso estar me colocando numa postura de observador. Isto enfraquece, diminui a autoridade e não gera força de intervenção.

Acreditamos que neste século o foco está nos valores, além das competências. Vemos que cada vez mais as organizações parecem como áreas de transição para o desenvolvimento profissional, o que irá dificultar a formação de culturas. Mas o número de pessoas que trabalham para algum tipo de organização aumenta em todo o mundo desenvolvido (mais de 90%). E, no longo prazo, o desafio do trabalho organizacional parece ser, entre outros, o de contribuir para que o planeta sobreviva – os recursos se tornam escassos, senão extintos, e a tecnologia sempre evoluiu num ritmo muito mais rápido do que o da construção de valores. Em que direção estaremos construindo uma cultura centrada em valores? Como uma organização pode contribuir, de fato, nesta direção, além do “politicamente correto?” Há uma carência de líderes que enxergam o longo prazo. Há uma carência de lideranças! Assim, a questão para RH transcende, em muito, a escala de prestar serviços. RH terá que direcionar, identificar lideranças potenciais e ajudá-las a dar um passo muito mais amplo do que o da gestão dos patrimônios. Boa sorte para todos nós!

Referências

1. Prahalad, CK; Hamel,G; Competindo pelo Futuro – Ed. Campus (19ª edição) – 2005
2. Jaques, E; Requisite Organization – CasonHall Publishers – 1998

Nota: Artigo publicado originalmente no antigo site do Instituto Pieron.

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