Carreira, Capacidade e Idade

agosto 14, 2016

A reportagem de capa da revista Exame, publicada no primeiro semestre deste ano, sobre a ‘Carreira Após os 40 Anos’ reflete a falta de conceitos com que se pensa o gerenciamento da capacidade humana para o trabalho e ainda mostra, paradoxalmente, as inconsequentes conclusões oriundas desta inconsciência. Ela traz danos às pessoas ao abordar assuntos vitais sem bases fundadas a respeito da natureza humana, trata a vida de maneira impulsiva e reflete um profundo engano acerca do talento humano, que teria sua melhor performance nos jovens.

Não somente a imprensa mostra inconsciência e carência de conceito, como também muitas empresas. Sem compreender muito bem a natureza da capacidade humana para o trabalho, a organização acaba definindo políticas que afastam as pessoas que vivem o melhor de seu potencial, quando se tornam mais ‘sábias’. Um exemplo freqüente é o estímulo à aposentadoria precoce.

Nossa experiência com organizações mostra claramente a necessidade de se ter uma concepção clara sobre a natureza da capacidade das pessoas. As empresas querem encontrar potenciais, visualizar o desenvolvimento das pessoas, incentivar o espírito empreendedor em todos. Elas afirmam em discursos que todos podem ser CEOs e assim por diante. Sem dúvida, são ações e intenções importantes e motivadoras. No entanto, como entender tudo isto dentro de um sistema gerencial voltado para resultados, para a competição, e também, por que não, para gerar oportunidades de realização pessoal?

Pretendo, à luz de teoria científica, validada e desenvolvida dentro de ambiente de trabalho, e pesquisada com profissionais que tomam decisões e participam dos destinos das organizações, esboçar algumas questões que podem dar alguma orientação para estas ações de gerenciamento de carreira, de capacidade humana, de desenvolvimento.

A escola americana de gerenciamento, essencialmente inspirada numa visão ‘behaviorista’ (comportamental) de pessoa humana, impregnou-nos de práticas que envolvem estimular comportamentos e recompensar respostas. Ainda nos debatemos com sistemas de ‘avaliação de desempenho’ (o eterno dilema, avaliar resultados?, como reconhecer o desempenho?, como remunerar o talento?), e, observem, parece que cada vez mais entramos num labirinto acerca do como conviver com a natureza humana no trabalho. Nos ensinaram a procurar no extrínseco os principais elementos para a gestão das pessoas e suas motivações. Nos ensinaram, ainda, a interagir pouco com as pessoas e sua natureza intrínseca, suas aspirações, seu autoconhecimento.

Minhas referências conceituais acerca da natureza humana têm outra fonte: uma visão cognitiva e auto-relizadora do ser humano – ou escola européia. Uma das principais referências desta escola são os trabalhos de Elliott Jaques (Tavistock Institute e Brunel University, Londres). Jaques, hoje, está para as teorias organizacionais, assim como Freud, para a Psicanálise e Adam Smith, para a Economia. Afinal, os únicos trabalhos científicos essencialmente longitudinais (20 – 30 anos, dados de mais de 15 países), centrados no estudo da complexidade do trabalho nas organizações e no da capacidade humana para o trabalho são dele e de sua equipe.

Jaques, entre outras coisas, pode ser considerado como ‘o pai do tempo’. Seus trabalhos levaram-nos a conhecer que uma das janelas mais importantes da atividade humana (ou cérebro, se preferir) é a janela do tempo. Seus trabalhos identificaram as ‘sete camadas de tempo’ para a organização do trabalho e das pessoas em torno do trabalho (Fig. 1). Ele descobriu que a maneira mais objetiva de se medir a complexidade de um trabalho é o tempo – a distância futuro na qual as pessoas conseguem se ver comprometidas com alguma coisa, ou o espaço de tempo futuro para o qual elas são capazes de formular metas e realizá-las. Bem, se conseguíssemos bater uma fotografia do horizonte de tempo com que os profissionais em uma organização estão trabalhando, provavelmente encontraríamos alguma distribuição parecida com a da figura 1.

Habilidades de construção de visões
Figura 1

Esta hipótese torna-se um dos pilares da concepção de Jaques sobre a natureza das estruturas hierárquicas e da capacidade humana para o trabalho. Ele constatou o que distingue um trabalho de outro, e conseqüentemente, a liderança, é o horizonte de tempo com que trabalhamos e projetamos ações no futuro. Por que os intervalos de tempo aumentam à medida que crescem as percepções de importância e responsabilidade, à medida em que o indivíduo desloca-se para níveis cada vez mais elevados nos sistemas executivos? Além disso, por que uma série regular de passos no nível da organização ocorre em determinados níveis de intervalos de tempo? Sua conclusão é a de que o intervalo de tempo máximo com o qual uma pessoa consegue lidar e alcançar mede e define o poder cognitivo dessa pessoa.1

Sete camadas de tempo, sete níveis máximos de complexidade para a gestão de um empreendimento (cinco para uma business-unit, sete para um empreendimento multinacional), sete níveis de capacidade das pessoas para conduzir ações no contexto do trabalho mundano.

Hoje, as pesquisas modernas com o cérebro estão confirmando e reafirmando as hipóteses de Jaques.2 Estas pesquisas falam de componentes biológicos específicos para o processamento e comando do futuro: os lobos pré-frontais, adiante da fissura de Rolando. Estudos sociológicos e antropológicos convergem. Outros sobre o desenvolvimento da cognição até o desenvolvimento moral sondam a mente como uma espécie de caixa do tempo: somos criaturas limitadas pelo tempo. Cada indivíduo, por sua natureza (autodeterminação) coloca-se limites sobre aquilo que irá se permitir fazer com o seu tempo, e, dentro desses limites, vive sua vida.

O desconhecimento dessa realidade fundamental gera boa parte da ansiedade profissional, que atinge qualquer organização, líder ou administrador. 3

Para Jaques, o alinhamento entre os horizontes temporais das tarefas e a capacidade das pessoas são a condição essencial para o pleno uso do potencial humano e o bem-estar no trabalho.4 Continuamos a tratar as pessoas como fornalha de carvão. Simplesmente abrimos as portas e atiramos um monte de tarefas sem atentar para o ‘horizonte de tempo’ de quem recebe essas atribuições. Depois nos perguntamos: por que os níveis de combustão da fornalha não atendem às expectativas?

Carreira, capacidade das pessoas e bem-estar no trabalho

Outro ponto fundamental do trabalho de Jaques é sua visão otimista e bem diferenciada da cultura tradicional de inteligência e ‘QI’. Com base em suas pesquisas ‘on-the-job’, cientificamente validadas, a capacidade das pessoas para o trabalho e para lidar com diferentes níveis de complexidade cresce ao longo do tempo. Durante mais de três décadas Jaques andou pelos corredores de numerosas organizações, observando e medindo o fator temporal como determinante do sucesso do gerenciamento de tarefas. Basicamente, suas conclusões apontam para diferenças significativas nas capacidades das pessoas, e estas têm a ver essencialmente com lidar com a incerteza e a ambigüidade, as quais formam um outro pilar de sua concepção.

Trabalhando com diferentes horizontes de tempo, as empresas conseguem se organizar para lidar com diferentes níveis de incerteza e, assim, integrar ações de gestão direta com ações tipicamente estratégicas e que demorarão muitos anos para frutificar (vide Fig. 1). Naquelas diferentes camadas de tempo, nós mostramos diferentes competências para lidar com a incerteza e a ambigüidade. Assim, dentro da organização, quando trabalhando com os diferentes horizontes de tempo alinhados, podem-se observar capacidade e competência no gerenciamento de fatores tais como:

  • Capacidade para considerar a incerteza como um recurso;
  • Capacidade para pensar além das regras;
  • Disposição para produzir teorias;
  • Uso de informações contraditórias;
  • Receptividade para todos os recursos;
  • Habilidade para ouvir o não dito;
  • Habilidade para procurar respostas divergentes e contraditórias, e conviver com a ambigüidade delas;
  • Habilidade para prestar atenção no que é, não é, e no que poderia ser;
  • Capacidade para conviver com o conhecimento, o desconhecimento, e também com aquilo que talvez nunca será desvendado;
  • Maior capacidade para conviver com processos de desenvolvimento, e menos com eventos.

Eu tenho convicção de que vocês, ao lerem estes fatores, poderão identificar em si mesmos maior ou menor tolerância ou habilidade de trânsito por eles. O que faz o tempo tão diferente de uma pessoa para outra ainda não tem uma explicação definitiva. Mas é possível o gerenciamento destas qualidades.

Jaques e sua equipe desenvolveram sistemas que conseguem identificar o ‘horizonte temporal’ das pessoas e das organizações, e a maneira de usar esta informação para o benefício mútuo. Para Jaques, a injustiça está em não reconhecer estas diferenças e apostar cegamente em processos de delegação que poderão causar perplexidade, ansiedade, decisões retardas, impróprias, sob a crença de que podemos fazer qualquer coisa em qualquer momento. Ele acha isto injusto, inadequado, e comprova o mau gerenciamento.5 (Fig 2)

Experiência dos sistemas
Figura 2

 

Todos evoluem para um nível além do atual. Contudo, como esta informação pode ser mais útil? Antes teremos que vencer um importante tabu. Se, de um lado, nossa capacidade cresce ao longo do tempo, existem diferenças individuais neste crescimento. Sem dúvida que para a empresa conhecer estes limites é fundamental, para que possa adequar a capacidade de acordo com os níveis de complexidade de trabalho. Mas, e a pessoa? Como reage, eventualmente, se tiver uma informação do tipo, ‘o melhor investimento de sua capacidade nos próximos 5/10 anos, com base no modelo Work Levels®, parece ser em atividades em que possa se responsabilizar pela condução de projetos, tarefas, com horizontes de tempo entre um e dois anos’ (tarefas assim são de gerentes de departamento, vendas, desenvolvimento, na carreira gerencial; ou assessores e consultores internos, na carreira ‘solo’). Contudo, para muitas pessoas, este ‘horizonte de tempo’ tende a se expandir no futuro (idade). E muitos podem experimentar mais uma, duas, três, quatro transições significativas na capacidade de condução do trabalho.

Entendemos que esta qualidade de informação traz mais benefícios do que prejuízos. Assim, as pessoas se fortalecem e podem pensar mais seriamente sobre o seu próprio destino. Este controle deve estar com o profissional que, sem dúvida, obterá benefícios por isso. Tudo isso tende a aumentar a probabilidade de sucesso da pessoa em trabalhos de equipe, grupos ou organizações.

Tudo depende ainda do grau de confiabilidade das políticas organizacionais. Em nossa experiência com milhares de feedbacks abordando a questão da capacidade humana e seu crescimento, e o como poderiam usar sua capacidade para o trabalho, observamos que muitas pessoas temem ser discriminadas por não ter grandes ambições como quer o senso comum. Averiguamos que muitas pessoas ficariam muito satisfeitas se as empresas aceitassem que estão felizes em determinados níveis de trabalho mesmo sendo intermediários. A crença de que todo subordinado quer o cargo de seu chefe nem sempre é verdadeira.

O conceito de trabalho que Jaques utiliza está associado ao uso do julgamento (trabalho humano não é medido pelo esforço ou energia empregada). Para ele, capacidade tem a ver com ‘o que fazemos quando não sabemos o que fazer’. Nosso trabalho, em encontrar o melhor match entre capacidade e desafio, visa, essencialmente, procurar contribuir para que todos se beneficiem do julgamento. Assim, é necessário um ambiente de confiança mútua. Usamos melhor nosso julgamento (intuições) quando não estamos sob stress, tensão, isto é, quando estamos na condição que entendemos por ‘flow’ (fig. 2).6

A condição de ‘flow’ ilustra tanto os benefícios como o mau uso da capacidade. Muitas empresas ‘promovem’ as pessoas para posições maiores por entender que sua alta performance (‘flow’) é indicador para promoção, sem aguardar o tempo de amadurecimento devido

Com estes pressupostos, entendemos que cada um possui um potencial, tanto atual como futuro, que hoje pode ser dimensionado, estimado, em termos de tendências, com relativo grau de precisão. E acreditamos que esta informação é essencial para o plano pessoal de carreira. Cada um de nós possui um projeto, ainda que inconsciente, de nosso futuro. A abordagem Work Levels® quer ajudar as pessoas a mergulhar em seus processos e compreender alguns aspectos de suas capacidades.

Muitas empresas não compreendem que a capacidade humana cresce ao longo do tempo. Muitas também, por terem promovido pessoas quando estavam em sua condição ‘flow’, acabam por querer confirmar a predestinação do ‘ser promovido ao seu nível de incompetência’. Esta, sim, uma profecia que se confirma pela inconsciência que se tem a respeito da capacidade humana e de seu crescimento. Não existe necessidade alguma de se promover pessoas ao seu nível de incompetência. Precisamos sim é conhecer as competências, e evitar julgamentos precipitados e, de fato, pseudo-otimistas acerca do quanto se pode fazer num determinado momento da vida. Acho justo utilizar conceitos e teorias que procuram garantir o adequado match entre pessoas e seus desafios – o que gera bem-estar e confiança nas políticas organizacionais. Qualquer pessoa desconfia dos julgamentos quando lhe oferecem algo acima ou abaixo de sua capacidade. Muitos se sentem constrangidos em recusar. Muitos gostariam de deixar de fazer o que fazem, outros de fazer muito mais do que realizam. A maior arte é gerenciar o uso da capacidade das pessoas. Os ganhos são muito mais compensadores do que formular discursos acerca do potencial infinito de cada um, o que, na prática, poucos acreditam. Mas todos acreditam, sem dúvida, na capacidade de auto-realização, do pleno uso de suas capacidades e seus recursos criativos em benefício do crescimento de uma comunidade. Esta me parece a responsabilidade essencial dos gestores de carreira ou desenvolvimento. A base é um profundo conhecimento da capacidade humana, seu desenvolvimento. Sem dúvida, isto não passa apenas pelos programas de treinamento. Também não entendemos que as perspectivas de carreira se encerram aos ’40’. Talvez esta seja a maior das blasfêmias acerca da natureza humana e sua capacidade. Jaques é claro: ‘muitos irão realizar o potencial após o período da aposentadoria’.7 Muitas empresas poderão estar perdendo competências em seus estágios de ‘sabedoria’, isto é, em momentos em que poderiam utilizar seu julgamento para problemas de maior complexidade para o benefício do empreendimento.

Referências Bibliográficas

  • Jaques, E., Journal of Applied Behavioral Science , Vol. 22, 1986.
  • Loye, D, Brain, Mind and Future Vision. Shambala, 1983.
  • Lynch, D., Kordis, P., The strategy of the Dolphin, Brain Technologies, 1988.
  • Jaques, E. Requisite Organization. Cason & Hall, 1996.
  • Jaques, E. Creativity and Work. Cason & Hall, 1988.
  • Adaptado de Mihalyi Cszencst. – Flow. Harper & Row.
  • Jaques, E., Human Capability. Cason & Hall. 1994.

Nota: Artigo publicado originalmente no antigo site do Instituto Pieron.

 

 

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