Hierarquias e estruturas organizacionais: o lugar em que devem estar

setembro 3, 2020

Embora hierarquias artificiais e baseadas no ego tenham sido usadas por milênios por tiranos para drenar energia e trabalho das massas, a hierarquia em si não precisa ser malévola, injusta ou destrutiva.

Uma vez perguntado sobre qual seria o objetivo de uma Organização, Peter Drucker afirmou: “não é o lucro, mas ter clientes”. Uma vez perguntado sobre por que ainda baseava sua teoria sobre organizações pelo modelo de hierarquias, Elliott Jaques respondeu: “burocracia é uma palavra suja, mesmo entre os burocratas, e nos negócios há uma visão generalizada de que a hierarquia gerencial mata a iniciativa, esmaga a criatividade e, portanto, já viveu os seus dias”. E continuou, “o homem ainda não ‘inventou’ outra maneira eficiente de organizar o trabalho humano”. Ambos expressaram esses pensamentos nos anos 70s e 80s.

Um dos primeiros livros sobre administração e as funções da liderança organizacional (As Funções do Executivo de Chester Barnard – 1938) destacava:

  1. desenvolver um sistema de comunicação informal …;
  2. assegurar a disposição para colaborar das pessoas competentes…;
  3. formular e definir propósitos, objetivos e fins da organização… de modo que as pessoas permaneçam coesas e capazes de tomar as decisões finais;
  4. inspirar a cooperação por meio da crença na compreensão comum…e a satisfação dos indivíduos;
  5. manter o equilíbrio entre as dimensões internas e externas; e
  6. rever o conceito tradicional de autoridade… para que as decisões sejam implementadas.

Relendo isso tudo, fica uma sensação de que há tanto certas “universalidades” a respeito de organizações e pessoas quanto repetição dos mesmos problemas.

Elogiar a hierarquia?

A modernidade acostumou-se a fazer críticas às “hierarquias”. Normalmente isso é feito descrevendo “hierarquia” como um inimigo, algo maligno, negativo, que se confunde com o uso unilateral do poder, com autoritarismo, com falta de autonomia, bloqueio das iniciativas, inacessibilidade, enfim, inúmeros atributos indesejados.

No entanto, Elliott Jaques dizia que até hoje a humanidade ainda não encontrou uma maneira mais eficiente de organizar o trabalho humano. E não sei se encontrará. Hierarquias existem desde que o homem deixou de ser nômade para fixar-se e iniciar o desenvolvimento da agricultura. Exemplos históricos são muitos, como o Império Romano, que sobreviveu por séculos, e as organizações de referência no século XXI, seguem estruturadas por sistemas hierárquicos.

É importante lembrar que os séculos XIX, XX e XXI trouxeram inovações que deixaram nossas vidas melhores. E que as assim chamadas “organizações exponenciais”, por mais avançadas que sejam nas suas formas de gestão, não encontraram outra forma de se organizar que não por hierarquias.

E aqui encontramos o cerne do tema deste breve texto: toda estrutura é composta por partes; todas as partes têm sua própria natureza para contribuir com a finalidade do todo; e toda estrutura, incluindo suas partes, precisa funcionar sistemicamente para realizar o propósito da sua existência.

Nosso corpo é uma estrutura hierárquica de partes. Se as partes estão ali e as trato mal, nosso propósito de boa saúde se perderá no tempo. Mas se retiro a hierarquia das partes, deixo de ter um sistema ótimo. Os rins não reclamam de ser rins, nem o fígado, nem os pulmões. As partes do corpo estão lá, prontas para desempenhar seus papéis.

Se insisto com os maus tratos, então estou falando de um problema de gestão, mas não posso confundir isso com as partes e muito menos com o sistema hierárquico. Afinal, haveria outro jeito de organizar nossas partes? Poderia deixar de ter um pulmão e solicitar que a vesícula assumisse seu papel? Retomando Elliott Jaques, “35 anos de pesquisa me convenceram de que a hierarquia gerencial é a estrutura mais eficiente, mais robusta e, de fato, a mais natural já criada para grandes organizações”.

Então, qual é o lugar das hierarquias?

Não é preciso haver um lugar reservado para elas, porque elas naturalmente existem. É como um instinto natural de organização que nós, como humanos, reproduzimos espontaneamente. Mas, claro, muitas vezes as partes são mal definidas e mal desenhadas, as relações entre elas não são claras, seus papéis se confundem, e os recursos necessários para funcionar não são disponíveis; se este é o cenário, então nenhuma capacidade humana pode se realizar em tal ambiente.

Por outro lado, se a estrutura está e suas partes estão bem definidas, então o problema está no funcionamento; isto é, na gestão, na liderança, na decisão, na iniciativa e na comunicação. As dificuldades de funcionamento não devem ser confundidas com o “princípio hierárquico”, mas, sim, em como ele é utilizado para organizar e alcançar objetivos.

Assim como o princípio hierárquico é dado, existem também níveis naturais de complexidade de trabalho que devem ser considerados ao se pensar numa organização. Todos sabem disso: o mundo sempre foi incerto, complexo, ambíguo. Os níveis de que falo não são algo inventado arbitrariamente. São níveis que o próprio ser humano expressa naturalmente por meio de suas capacidades de compreender, enxergar, antecipar e definir objetivos no tempo.

Como pessoas, somos naturalmente orientados para definir e alcançar objetivos. E quanto mais ambicioso, sonhador ou disruptivo for o objetivo, mais precisaremos de uma estrutura complexa para alcançá-lo.

No mundo do trabalho, nossa capacidade de definir objetivos e enxergar a complexidade do que estamos querendo realizar é que definirá o tipo de estrutura necessária para realizá-los. Dessa maneira, as organizações não pecam por reproduzirem um “instinto hierárquico”; elas pecam por não considerarem a natureza das hierarquias organizacionais. Essa natureza das hierarquias tem algumas e poucas regras básicas:

1) Todo e qualquer negócio requer um certo número de níveis hierárquicos. Os Work Levels® descrevem sete temas de complexidades de trabalho e de capacidade humana para lidar com as diferentes tarefas (partes), necessárias para que um empreendimento alcance seu propósito. Um pequeno negócio talvez preciso de dois ou três níveis; uma grande corporação, talvez seis ou sete.

2) Cada um desses níveis é responsável por contribuir de maneira específica; porém sua contribuição não é um fim em si mesmo, mas parte de um todo. Afinal, o estômago não trabalha para si mesmo, mas funciona num sistema de input, processamento e output, que afeta as outras partes envolvidas.

3) A hierarquia deve funcionar por sistemas de complexidade de tarefas, em que o trabalho de cada nível é totalmente diferente daqueles de níveis adjacentes. Um determinado nível agrega valor para o trabalho do nível imediatamente abaixo e alinha suas ações de acordo com os contextos definidos pelo nível imediatamente acima.

4) O sistema funciona por princípios meritocráticos: as hierarquias existem e contam com que cada parte cumpra o seu papel; isto é, realize o trabalho que precisa ser feito. O fígado jamais questionará a “autoridade” do pâncreas e vice-versa, porque ambos reconhecem mutuamente seus papéis e trabalham para garantir que suas contribuições para o todo sejam feitas. Enfim, cada parte existe para realizar plenamente sua capacidade de trabalho e essa realização é feita em cooperação com as outras.

5) Os sistemas hierárquicos obtêm seu melhor desempenho quando respeitam a natureza humana e os “direitos” de suas partes: as pessoas. Falo do direito de cada pessoa ter seu potencial plenamente realizado e usar sua capacidade para contribuir com participação, criatividade e imaginação. Isso significa não “culpar” as hierarquias e, sim, considerar que o funcionamento delas é que merece atenção. Dizer que tal estrutura é rígida e que impede a criatividade não é uma limitação das estruturas e das suas partes, mas das pessoas que as gerenciam. Se as pessoas se valem ou usam suas estruturas para fins não alinhados com o propósito da organização, para obter poder ou favorecimento pessoal, então o problema é outro.

Organizações nascem para realizar um propósito e se perpetuam pela capacidade de entender o ambiente em que se inserem e suas particularidades. Sempre foi e sempre será “vuca”. Incerteza, ambiguidade, mudanças evolutivas e rupturas que emergem aqui e ali aumentam o dilema das decisões e a percepção de oportunidade; isto é milenar.

Ainda nas palavras de Elliott Jaques, o principal mentor do modelo Work Levels®: “como sistema organizacional, a hierarquia gerencial nunca foi adequadamente descrita e, certamente, nunca foi adequadamente utilizada. O problema não é encontrar uma alternativa a um sistema que já funcionou bem, mas que talvez não funcione mais; o problema é fazê-lo funcionar eficientemente”. O fato de que “não existem pessoas desmotivadas e, sim, estruturas desmotivadoras” resume onde colocar a atenção nos problemas da gestão do trabalho nas organizações. O fato de não existir um ambiente de confiança mútua também é uma responsabilidade da gestão.

Estruturas que têm níveis demais geram ambientes políticos, de autopreservação; quando têm menos níveis que necessário, perdem oportunidades. Quando os níveis são exatamente aqueles requeridos pelo tamanho do propósito e dos desafios, liberam a criatividade, a produtividade e a realização das capacidades das pessoas. A atenção das pessoas estará em realizar. E será a gestão que dará o tom do quanto as hierarquias são ou não contrárias às necessidades da natureza humana no trabalho. Enfim, corrija a estrutura e você obterá novos comportamentos.

E finaliza Jaques: “Precisamos parar de procurar inutilmente pelo ‘Santo Graal organizacional’ e nos acostumarmos ao trabalho duro de colocar nossas hierarquias gerenciais em ordem.”

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