Você já deve ter sentado num restaurante japonês tradicional. Deve ter passado os olhos pelo cardápio, cheio de nomes desconhecidos, e chamado alguém para ajudá-lo a decifrar os pratos. Talvez tenha encontrado um nome sugestivo ou um item que conseguiu identificar. Mas a combinação descrita por quem o ajudava não soou exatamente o que imaginava. O colega que lhe acompanhava gostou do que ouviu. Era isso mesmo o que queria. Você ainda não estava convencido. Continuava a folhear o cardápio e a ouvir as sugestões…
Muitas empresas optaram – e ainda optam – por modelos por competências para a gestão de seus funcionários. Um fenômeno observado há, pelo menos, duas décadas ou pouco mais. O conceito ganhou muita força com a publicação de Competindo pelo Futuro de Hamel e Prahalad, no inicio dos anos 90, que trata de competências organizacionais. No embalo da new wave, a tal “novidade” rapidamente se transpôs para a gestão de pessoas. Mas esqueceu-se que o modelo de gestão por competências foi formalmente introduzido por McClelland, nos idos de 1973.
No início da década vimos a publicação de um incrível catálogo que descreve algumas centenas de competências – um grande dicionário de consultas, “compras” e fórmulas de desenvolvimento. O problema estaria resolvido! O resultado até aqui é que as empresas dedicam grande parcela de tempo para identificar as competências essenciais.
Esse investimento de tempo parece fazer sentido quando reconhecemos que os desafios atuais para lidar com tarefas mais complexas a um ritmo acelerado sugerem que as pessoas precisam de uma variedade maior de competências. Também porque a existência de competências distintivas teria alguma relação com desempenhos excepcionais – 40 a 100% acima de média – e a promessa de um talent management eficiente traria altos retornos para a companhia, da ordem de 30% a mais em termos de produtividade (mais em The Workforce Scorecard e Competence at Work).
Pensa-se, então, por competências, pois esse modelo promete elevados retornos para o negócio. Paradoxalmente, há inúmeros clientes que falam mais de frustração com o uso do modelo e, até mesmo, consideram deixa-lo de lado. Vejamos alguns dos aspectos que tem gerado mais insatisfação do que o contrário:
1. Problemas com a definição
No jantar, pode até ser que você não tenha compreendido tudo que havia no cardápio, mas acabou escolhendo um prato. Como você definiria o que é competência? Faça essa pergunta num encontro qualquer entre gerentes e verá que não há um entendimento comum entre as pessoas, nem mesmo entre o pessoal de RH. Sabemos disso pelo nosso programa básico de entrevista por competências conduzido há décadas, e também pelo nosso trabalho em consultoria. As repostas que você obterá tratarão desde habilidades até inteligência emocional, passando por expertise e uma mistura de experiências com conhecimentos. Fernandes e Comini já descreveram esse problema num estudo a respeito do tema. Quer um exemplo? Utiliza-se a ideia de “CHA” para se definir competências, esquecendo-se que não há como falar de competências sem falar de resultados e estratégias de alocação dos recursos pessoais. Isto é, as pessoas decidem (julgam) quando e como mobilizar seus recursos em função das condições enfrentadas. Voltando ao que dizia McClelland, competências descrevem determinadas estratégias de alocação de diferentes recursos de ação que levam a um desempenho superior num contexto específico. Isto é, capacidade de mobilizar recursos para lidar com situações e obter – com frequência elevada – resultados distintos, bem acima da média.
2. Problemas com as descrições de competências
Os problemas com as definições e entendimento avançam quando tratamos de descrever competências. Não deveria existir dissonância entre o entendimento de um profissional e do seu gerente com relação a uma determinada competência. As descrições tendem a focar os comportamentos visíveis; isto é, o que se deve fazer para alcançar os resultados: dirigir uma equipe, tomar decisões, realizar massivamente, mostrar confiança etc. Agora pergunto: como descrever tudo isto de maneira que seja generalizável? E as condições que mudam? Novas variáveis, diferentes reações das pessoas? Como resultado dessa tentativa de descrever competências, obtém-se um grande “tratado” que acaba sendo compartilhado com toda a organização na forma de rápidos workshops. Supõe-se pleno entendimento do modelo e sua aplicação, e recomenda-se que o mesmo seja utilizado na avaliação do desempenho e na identificação de “talentos”.
3. Listas de competências e modelos copiados
De quantas competências precisamos? Será que preciso de um cardápio tão amplo a ponto de me confundir? Queria apenas um jantar frugal e a companhia de amigos, mas agora fico com receio de não sair tão satisfeito como gostaria? Hamel e Prahalad trouxeram contribuições muito simples para olhar as competências das organizações e seus negócios, e chamo a atenção para três delas:
a. Transferibilidade da competência para criar novos produtos;
b. Dificuldade de imitação; e
c. Adição de valor distintivo para o consumidor/cliente.
Quando falamos de gestão de pessoas, quantas competências satisfazem, de fato, os três critérios acima? Poucas. Mesmo assim, algumas organizações possuem listas com até 16 competências (às vezes mais!). Suas descrições frequentemente criam overlaps, tornando difícil interpretá-las individualmente.
Ainda assim, vejamos o seguinte critério: dificuldade de imitação. Por mais curioso que possa parecer, muitas organizações fazem benchmarking para “aprender” sobre o modelo de competências de outras empresas, ou usam consultorias que replicam e trazem modelos que foram usados em outras empresas. Veja bem, se deve ser distintivo, então o modelo de competências deve ser específico – diferente em si mesmo – e refletir seu alinhamento com o propósito e valores da organização. De quantas competências você e sua organização realmente necessitam para tratar daqueles aspectos core dos seus executivos, gestores e funcionários em geral? Difícil dizer. Teóricos falam de oito, seis, cinco… O que fazemos? Escolheremos um número mágico? Que tal sete? Afinal são sete chacras, sete dias da semana, sete notas musicais…
Também não podemos esquecer que, se existe um modelo, alguém deverá usá-lo para avaliar competências. E o trabalho é um processo dinâmico; isto é, as pessoas estão em movimento e o gestor não está o tempo todo ao lado de seus liderados observando comportamento por comportamento. Para onde o gestor deverá canalizar sua atenção? Será que uma lista enorme torna essa tarefa mais fácil? Ao ouvir a descrição do quinto prato japonês, já não me lembro mais do primeiro!
4. Diferenciação
As competências devem diferenciar bons dos “grandiosos”. E seu eu deixei de escolher um prato maravilhoso apenas porque não tinha ideia de quão saboroso ele seria ou porque a descrição apresentada não me agradou? Já comeu um prato aparentemente vegetariano e que o atendente se esqueceu de mencionar o “franguinho” no meio do arroz?
O modelo por competências deve apontar a direção da atenção, tanto do funcionário quanto dos gestores responsáveis por identifica-las em seus liderados. Além disso, competências distintivas serão observadas em apenas uma pequena parcela das pessoas, pelo próprio fato de serem (idealmente) distintivas. E, pior, serão difíceis de serem desenvolvidas, porque não são commodities, não são fáceis de “comprar”. Não é fácil descrever os comportamentos desejados já que os julgamentos das pessoas não estão sob controle dos textos e descrições. As pessoas sempre farão seus julgamentos sobre como seguir adiante, à luz das circunstâncias. Elas escolherão o que usar e como usar, guiadas por seus valores. Há ainda, o risco do one size fits all. Diferentes funções ou carreiras parecem exigir competências especificas. Diferentes diretorias podem exigir padrões de liderança específicos. Imaginem finanças e vendas; industrial e recursos humanos!
5. Integração das competências com o talent management
Você voltaria àquele restaurante japonês? Saberia dizer quais os cinco pratos top de lá? Sendo competências algo distintivo, o que mais elas podem dizer? Como serão integradas às práticas de gestão que vão desde a gestão do desempenho até remuneração, carreira, identificação de potenciais sucessores? São perguntas interessantes. O que é esperado que o gestor faça com o modelo por competências? Se competências identificam talento, a performance observável deve estar associada à identificação e reconhecimento do talento. Do contrário talvez estejamos falando de “potencial para”, o que também alimentaria os processos de movimentação e sucessão. Se competências têm alta relação com o desempenho (na verdade, ter competências “garantiria” alto desempenho), seria um bom indicador para o sucesso futuro, numa função maior, onde outras qualidades de competências seriam importantes? Será que o sucesso aqui sugere sucesso num plano maior de complexidade? Se uma competência se baseia no sucesso passado, também tomaremos o tempo necessário para avaliar as competências futuras?
Olhando um grupo de liderados e julgando seus desempenhos, o modelo por competências garantirá uma avaliação justa? Algo que aprendi na prática é que os gestores apoiarão todo e qualquer sistema gerencial que efetivamente os ajudem a alcançar seus objetivos de maneira eficiente e eficaz. Não pode haver dúvidas a este respeito!
6. Variedade (ou a falta de)
Outra discussão interessante é que, no geral, não vamos ao mesmo restaurante seguidamente. Gostamos da diversidade, da variedade, de sermos de alguma forma surpreendidos por um prato diferente, que nos leva a ter uma experiência singular. Os modelos por competência partem do pressuposto que os gestores sabem e conseguem expressar exatamente o que é desejável para a companhia. Quando modelos por competências são desenhados, as descrições frequentemente decorrem do passado, e acredita-se que essa repetição do passado garantirá a continuidade do sucesso e a realização do propósito organizacional. Paradoxalmente, muitas organizações falam em diversidade, mas olham para as pessoas por modelos predefinidos. Querem contratar jovens “talentos” – uma tarefa quase impossível – pois talento implica em competência, o que implica em desempenho exemplar já verificado. Um grande risco dos modelos por competências é limitar a forma como olhamos para as pessoas, para a diversidade e para as possibilidades. Tais modelos podem limitar também o descobrimento daquelas pessoas potencialmente muito capazes, mas que estariam em grupos algumas vezes não participantes do status quo ou dissonantes da cultura existente na organização.
7. Luz no fim do túnel?
Compartilhei experiências práticas e pensamentos que já não são apenas meus. Há propostas muito controversas – e também muito interessantes – sobre diferentes formas de apoiar a gestão. Não defendo esta ou aquela. O que faz sentido para um cliente ou empresa não necessariamente fará sentido para outras. Afinal, o compromisso estará sempre com a identidade de cada um à luz do propósito estratégico e do ambiente que se quer cultivar na organização. Por exemplo, a fórmula que Elliott Jaques utiliza para explicar um desempenho é:
D = f (CP x K/S x V x –T)*
* Leia-se: desempenho é função de capacidade potencial, conhecimentos hábeis, valores e ausência de traços negativos de temperamento. Adaptado de Requisite Organization.
Veja que a fórmula fala de capacidade potencial, conhecimentos hábeis para coisas e pessoas, valores e ausência de traços comportamentais que poderiam ser complicados demais para o trabalho com outros. Capacidade potencial significa, de alguma maneira, uma promessa de desempenho num trabalho que a pessoa valoriza fazer. Não há um foco em competências e, sim, na capacidade que a pessoa tem para julgar e discernir em condições de incerteza. É para isso que somos pagos.
O modelo de gestão que é intimamente associado a essa visão responsabiliza o gestor pelos outputs de seus liderados e entende que a atenção do gestor para julgar o desempenho dos liderados deve se concentrar no quão bem um liderado está fazendo aquilo para o qual foi contratado. Ou, de outra maneira, o quão comprometido está em usar o melhor de seus esforços para aplicar sua capacidade para produzir o resultado esperado com os recursos disponíveis e num tempo definido!
Também, deve-se considerar que não há como garantir que qualquer resultado previamente esperado possa ser alcançado conforme o planejado:
- Não se consegue planejar as circunstâncias futuras, que são sempre imprevisíveis
- Os liderados têm seus recursos alocados por seus gerentes, e não têm a autoridade para obter os recursos por conta própria
Assim, o liderado deve ter crédito pelo seu comprometimento em aplicar sua capacidade ao lidar com as adversidades e vicissitudes dos problemas e limitações que encontra ao conduzir seu trabalho. Isso é mais importante do que levar crédito pelos outputs, ou penalidades por atrasos ou por alguma dificuldade com os padrões de qualidade, que podem decorrer de elementos externos ao trabalho e fora da área de influência do liderado.
Finalmente, medidas de resultado tidas como “quantificáveis” e “objetivas” não são justas em função do que está explicado acima. Muitos dos bônus são definidos em função de outputs sobre os quais os empregados não tiveram pleno controle, gerando sintomas tais como suspeita e desconfiança entre líderes e liderados, ou trade-offs indesejáveis entre as partes.
Na fórmula acima destaco, por exemplo, valores, o que nos remete ao conceito de flow.
8. Desempenho e Flow
Somos guiados por valores. Acreditamos, e temos evidência em nós mesmos, que quando estamos com um trabalho que nos desafia, que valorizamos fazer, e sentimos que temos os recursos internos para lidar com ele, estamos potencialmente em flow. Flow é uma condição singular de pleno engajamento com o “o que fazer”, porque este “fazer” me realiza e agrega valor à organização.
9. Retenção
Finalmente, não há como reter talentos. Cada um de nós terá condições de produzir, realizar, criar e surpreender pelo pleno uso do nosso potencial individual. Para transformar potencial em desempenho, somos nós mesmos que fazemos as escolhas e dirigimos nossa atenção e interesse àquilo que sentimos que poderá nos realizar. As pessoas querem, desejam e buscam se realizar e, quanto mais podem canalizar seus recursos para realizações grandiosas, mais agregam valor para seu ambiente social, seja ele qual for.
Nem todos seremos os “Steve Jobs” da vida, mas naquilo que podemos ser, queremos ser muito bons. Assim, não há como reter “talento” nas organizações. Se o talento existe, ele está sob nosso controle individual e somos nós a escolher o que fazer com ele. As organizações têm a tarefa de criar ambientes e contextos para que o talento se expresse. Devem investir muito na capacidade gerencial para inspirar, identificar os motivadores intrínsecos das pessoas e para agirem como quem dá espaço e estimula a produção de boas surpresas. Não há retenção. Há a construção de um ambiente inspirador para que as pessoas se realizem e ajudem suas organizações a alcançarem seus propósitos. Afinal, você escolhe qual o restaurante que acredita ser bom para você, não?
10. Jogar tudo fora?
Não, naturalmente. Há usos interessantes dos modelos por competências. A seleção de pessoal é uma delas. Já que seleção por competências é umas das práticas que mais mostra correlação com o sucesso na vida prática (Spencer & Spencer), temos aí uma excelente aplicação dos conceitos, que pode agregar valor para a organização. Lembremos: competência olha para o que foi feito e extrapola as estratégias de sucesso para as necessidades imediatas de uma função a ser preenchida. Também aqui, as questões de definições, descrições e benchmarking de competências precisam ser consideradas. Entrevistar por competências é um processo de avaliação dinâmica (veja nosso outro artigo que fala de personalidade, inteligência, liderança e avaliações dinâmicas). Por isso, requer tempo. Não se compreende competências por meio de um “teste”. Envolve a competência do entrevistador, que deve ir além dos padrões e de senso comum de uma entrevista de emprego.
Aprender a respeito de competências pode ser muito útil nos processos de coaching que o líder deve conduzir com seus liderados. Sendo coaching um processo em que o líder procurará fazer com que o liderado explore todas as possibilidades de realização em seu cargo atual, o modelo por competências ajuda o gestor a conversar sobre as melhores estratégias para se alcançar resultados. Isso não necessariamente envolve replicar modelos predefinidos. Mas o modo de pensar sobre competências é útil para o gestor identificar em que temas colocar a atenção do liderado na busca de superar algumas deficiências.
O que temos aprendido é que existem o que chamamos de “competências de fundo” ou “subjacentes” associadas ao sucesso gerencial, a um desempenho diferenciado, à prontidão para decidir, tomar iniciativas e realizações que chamamos de “grandiosas”. Não são competências que podem ser descritas por meio de comportamentos. São padrões subjacentes, ou predisposições. Como estas predisposições não são modeláveis – pois são muito mais tácitas –identifica-las abrirá uma perspectiva muito interessante à medida em que há espaço para que elas se expressem no ambiente, sempre guiadas por valores. Em linha com os critérios de competências destacados no tópico 3, estas subjacentes serão muito difíceis de imitar, e criarão alguma diferença entre desempenhos “comuns” e os altamente diferenciados. O processo de coaching ou mentoring – conduzido por gestores – ajudará a dar direção para essas competências subjacentes, sem que isso se torne uma camisa de força associada ao modelo de como achamos que queremos ser. O que queremos ser sempre será um caminho sendo desbravado. Como não conseguiremos decodificar antecipadamente esse caminho, vamos contar com nossa predisposição para desempenhar, para liderar, para realizar. Esta predisposição, mais ou menos intensa em cada um de nós, é que precisa ser compreendida, cultivada e também ter condições de se expressar num contexto que não a restrinja.