Aprendizagem e Instrucionismo – Novos Paradigmas

por pieron

agosto 14, 2016

Aprender é um requisito fundamental para a existência sustentada, para pessoas e para organizações. Parece não haver dúvidas sobre isto, principalmente num ambiente onde dados e informações fluem com muita velocidade embora, não, o conhecimento. Conhecimento depende da capacidade de aprender e este conceito – aprendizagem, historicamente muito discutido e atualmente retomado com grande intensidade, é hoje um dos grandes pilares do desenvolvimento organizacional e individual.

Ao lado da aprendizagem individual caminham as discussões sobre ‘aprendizagem organizacional’. Parece que conseguimos localizar a aprendizagem numa pessoa. Podemos fazer o mesmo em relação às organizações? Existe uma ‘organização’ que aprende? Isto é, existe um ‘o que organizacional’ que aprende tal qual podemos dizer de uma pessoa?

Teorias da aprendizagem são cruciais para responder a estas questões. Décadas de estudos produziram algumas idéias sobre a aprendizagem humana. Psicólogos, lingüistas e educadores estudam com entusiasmo esse tema e fazem descobertas a respeito das limitações cognitivas para a aprendizagem e dos meios de estimular o desenvolvimento cognitivo.1 O foco de Piaget nos processos do desenvolvimento cognitivo de crianças e o trabalho de Lewin sobre a pesquisa da ação e do treinamento em laboratório, forneceram muitas perspectivas sobre como aprendemos individualmente e em grupos.2 Algumas linhas teóricas baseiam-se no ‘estímulo-resposta’, como Skinner, e outras trazem as contribuições da Gestalt ou mesmo da Psicanálise.

Um bom trecho das teorias ‘descreve’, do ponto-de-vista do observador, como ocorre a aprendizagem. Daniel Kim3 retoma o ciclo do ‘PDCA de Shewhart, recuperado também por Deming, para fazer referência ao processo pelo qual ocorre a aprendizagem. Destaca quatro etapas: primeiro, observações e reflexões; segundo, formação de conceitos com abstrações e generalizações; terceiro, teste das implicações dos conceitos em novas situações e, finalmente, experiência concreta. Em resumo, observar, avaliar, projetar e implementar.

Novas incursões de outros autores, como Peter Senge, trazem a discussão da questão da aprendizagem organizacional. Um de seus principais conceitos – modelos mentais – mostra como nossa representação do mundo, incluindo as compreensões implícitas (crenças, valores, processos mentais inconscientes) e as explícitas (raciocínio articulado, deduções, conclusões) têm um papel ativo no comportamento de uma pessoa, pois fornecem um contexto segundo o qual a atitude de observar e interpretar novos materiais é aplicada. Os modelos mentais tanto podem dar sentido, como limitar ou facilitar a aquisição de novos conhecimentos.

Finalmente, Kim ainda apresenta dois níveis de aprendizagem – operacional e conceitual, isto é, o que se aprende e o por quê se aprende (know how e know why). A aprendizagem operacional é representada em nível de procedimentos, no qual se aprendem as etapas para se completar uma tarefa específica, capturada sob a forma de rotinas. A aprendizagem conceitual tem a ver com o pensar sobre o motivo de se priorizar algo, desafiando muitas vezes a própria natureza ou existência de condições, procedimentos ou concepções predominantes.

Instrucionismo

Estas idéias são relativamente acessíveis. Descrevem processos que ‘aparentemente’ ocorrem ‘dentro’ das pessoas. E estamos acostumados a falar de aprendizagem sempre nos referindo a uma relação, no mínimo, a dois – quem ensina e quem aprende. Um ponto instigante, porém, é trazido à tona por um dos mais conceituados biólogos contemporâneos, Humberto Maturana, através do seu conceito de autopoiesis.4 Maturana vive em Santiago e pode ser considerado o maior patrimônio latino-americano em Biologia, sobretudo no campo da educação e aprendizagem. Aqui, especificamente, interessa sua crítica veemente ao instrucionismo5 nos seres vivos, inaugurando uma discussão da aprendizagem com base na Biologia. Para Maturana, os sistemas vivos são determinados estruturalmente, de modo que tudo o que lhes possa acontecer a qualquer momento depende de sua estrutura. O que nos interessa mais de perto ainda é a idéia de que todo agente que incide sobre tais sistemas determinados estruturalmente não faz mais que desencadear mudanças; estas mudanças são determinadas nos próprios sistemas. Maturana afirma com grande ênfase:

A partir de nosso viver cotidiano sabemos também que, ao escutarmos alguém, o que ouvimos é um acontecer interno a nós, e não o que o outro diz, embora o que ouvimos seja desencadeado por ele ou ela. (6)

Sistemas autopoiéticos são abertos ao fluxo de matéria e energia, mas fechados em sua dinâmica estrutural. Estar vivo significaria modificar-se estruturalmente apenas quando estas mudanças convergirem para conservar a autopoiese (modo de vida autodeterminado). Sistemas autopoiéticos são sistemas ‘auto-organizantes’ e caracterizados por três aspectos principais: autonomia, circularidade e auto-referência. Estes conceitos expressam a capacidade autônoma da vida de conduzir sua própria preservação e desenvolvimento, e inclusive de gerar a si própria (autoproduzir-se).

Aprender é uma decisão ‘de dentro para fora’ e, isto, definitivamente, descarta o instrucionismo. Os fundamentos são essencialmente biológicos e, por extrapolação, afetam as ciências humanas, como cognição, sociologia e até o direito. Com Varela, Maturana conclui ser o próprio ser vivo um sistema fechado, constituído pela circularidade de seus processos. A percepção da realidade exterior, ou seja, o fenômeno ‘conhecer’, é exatamente o próprio fenômeno ‘viver’, ou seja, é um operar (interior) adequado ao ambiente (exterior), ou ainda, o conhecer é um fenômeno do operar do ser vivo em congruência com suas circunstâncias.

O modelo tradicional percebe o sistema nervoso como aberto, o que capta informações por meio dos cinco sentidos e constrói uma representação interna de uma realidade externa. O equívoco deste modelo reside justamente na noção de representação – base das ciências cognitivas das últimas décadas e parte de nossa orientação filosófica ocidental de inspiração cartesiana da dualidade entre corpo e mente, sendo a mente uma ‘entidade desincorporada’ (âmbito das idéias). Maturana vai exatamente na direção oposta, mostrando como nossa cognição e pensamentos estão inextricavelmente contidos em nossa ‘mente incorporada’.

As bases dessas conclusões resultam de pesquisas neurológicas, uma delas com a percepção visual das cores. Maturana compreende a atividade das células da retina em termos da circularidade interior, desvinculando a atividade das células do estímulo cromático exterior. É a estrutura da retina que determina a atividade da retina, e não o estímulo externo.7 Enfim, as imagens (representações) criadas pelo sistema nervoso são, na verdade, expressões ou descrições de sua própria organização e, assim, a experiência sensorial da realidade deixa de ser uma representação da realidade e passa a ser uma configuração, uma ‘especificação’ da realidade.

Aprender e o não instrucionismo

As implicações epistemológicas são profundas. Enquanto podemos dizer que existem ‘aprendedores’, não podemos dizer o mesmo sobre os ‘ensinadores’. A instrução ou a tutela da aprendizagem descaracteriza-se totalmente. Organismos autodeterminados decidem o que aprender em função de suas estruturas. Organismo e meio geram-se mutuamente, e não existe esta interdependência do organismo e seu meio.Termodinamicamente abertos, mas organismos estruturalmente fechados. Isso significa que um organismo autopoiético pode trocar livremente energia com o ambiente, mas, ao trocar informações, essas não necessariamente terão um mesmo significado para o sistema (ser vivo) e para um observador externo; para o sistema, cada informação tem um significado próprio, que só para ele faz sentido. Desta forma, mais que interdependentes, o organismo e o meio (como indivíduo e sociedade) são interconstituintes.

O objetivo deste fechamento é a autoprodução da identidade do sistema. O sistema precisa ser autoreferente, pois ele não consegue participar de interações que não estejam especificadas dentro do padrão de relações que descreve sua organização – já que não tem como compreendê-las.8 As mudanças no organismo são desencadeadas pelas interações, mas nunca por elas determinadas.

Se ensinar passa a ser uma quase-impossibilidade, de outro lado isto não elimina a importância da aprendizagem. Mas como a aprendizagem é autodeterminada, as condições que a desencadeiam nos organismos é que deveriam ser objeto de profundo interesse tanto de quem ‘ensina’ quanto de gerentes e tutores de modo geral. A responsabilidade passa a ser mais seriamente na ‘compreensão’ das particularidades dos organismos e não nas tecnologias disponíveis. A concepção do ser vivo como individualidade (e não dependente do meio) confere legitimidade ao ser em si, cada sistema é único em si, cada qual opera sua autonomia, sua auto-organização e sua estratégia unicamente em função de si.

Os organismos autopoiéticos convivem, contudo, com graus de desordem decorrentes da assimilação dos ‘ruídos’ externos e isto os faz evoluir. Misteriosas são as particularidades das decisões de cada organismo em relação ao ‘que quer’ registrar como necessário para sua desorganização e evolução.

Aprender é conhecer e conhecer é aprender, sempre decisões de dentro para fora. Mas não conseguimos ‘instruir’ um organismo em relação ‘a quais ruídos assimilar’. Carl Rogers, independente dos conceitos de Maturana, há muito afirmava ‘ninguém ensina ninguém’. Mas existe aprendizagem pois os organismos continuam sua marcha na direção da autocriação.

As perspectivas do desenvolvimento parecem colocar mais e mais responsabilidades nas relações com base na compreensão e empatia, e na habilidade de organizar ambientes que consigam despertar interesse por aprendizagem. Organizações ‘perenes’, que há décadas sobrevivem, como descrevem Collins e Porras, não são determinadas por seus ambientes e, sim, suas organizações são decorrentes de suas identidades que, contudo, precisam se atualizar para não perder a congruência com o ambiente. O que há em comum entre essas organizações é exatamente a falta de uma ‘visão’, uma clara idéia de futuro.

O alvo principal destas empresas nunca foi, por exemplo, a ‘conquista de um mercado’, mas a construção de um sentido para a organização – de sua identidade, expressa em princípios e não em objetivos. Assim como as empresas, os indivíduos criam um ambiente para suas ações e não se pode descrever um ambiente sem interagir com eles.

As condições da aprendizagem e a necessidade do indivíduo já estão nele contidos (tal como nas organizações). Dentro de sistemas auto-organizáveis, a cognição é sempre um ato criativo, de construção da realidade, pois não toma o mundo como previamente dado. Assim, a ‘instrução’ externa não tem significado em si para organismos autopoiéticos. As ‘instruções’ são internas. O ato de dar um livro para alguém diz muito pouco a respeito do conhecimento que essa pessoa irá adquirir. Ao ler o livro, a pessoa primeiro terá de ser capaz de distinguir o livro da mesa onde está apoiado, depois distinguir a tinta (letras) do papel, depois distinguir o conteúdo do livro (a respeito do que é o livro), depois se o conteúdo é ‘bom’ ou ‘ruim’, se é aplicável ou não, e assim por diante. Todas estas distinções são feitas de acordo com normas próprias, pessoais, ainda que tidas como legítimas por uma comunidade. Ainda mais, sendo o ser vivo estruturalmente determinado, o que vem de fora apenas desencadeia o processo de percepção, mas este é efetivado por correlações internas do ‘observador’ (organismo). Enquanto aprender é, de alguma forma, assimilar o externo, esta assimilação é uma conformidade do organismo com os estímulos, e nunca uma imposição do meio sobre o organismo.

Maturana considera: ‘Quando, na vida cotidiana comum, respondemos a nós mesmos ou a alguém uma pergunta que nos exige uma explicação de uma experiência (situação ou fenômeno) particular, sempre a respondemos propondo uma reformulação daquela experiência … Se a reformulação proposta é aceita como tal pela pessoa que fez a pergunta, ela se torna literalmente uma explicação, e tanto a pergunta quanto o desejo de formulá-la desaparecem. A explicação torna-se uma experiência que pode ser usada para outras explicações. Esta aceitação, por parte do ouvinte, é uma aprendizagem, e é uma decisão interna do organismo, na medida em que acomoda ou não a explicação.’

Se as condições da aprendizagem ‘estão lá’, no organismo, então o desafio está na habilidade para interagir com os organismos, compreendê-los, nas particularidades, nas necessidades, e em adequar condições ambientais. O ‘coaching’ aproxima-se desta idéia, na medida em que através da interação busca-se elevar a aprendizagem de um organismo para que este gere melhor desempenho. Mas é necessário compreender e não instruir. A mesma reflexão se dá para sistemas de ensino e aprendizagem. Muitas organizações investem em universidades corporativas, mas repetem o mesmo dilema cartesiano da cisão entre instrutor e aprendiz. As organizações precisam rever, em muito, critérios de geração de aprendizagem e de compreensão auto-organizativa das pessoas. A crença nas tecnologias de informação e sistemas de ensino à distância pouco poder tem em gerar o tipo de aprendizagem desejada. Parte desta arte do ensinar e aprender tem a ver com as condições de empatia nas interações, de modo a que os organismos reconheçam similaridades e possibilidades de aprendizagens distintivas.

Bibliografia

1 Feuerstein, Reuven; Instrumental Enrichment. Heinemann; UK; 1980.
2 Kolb, DA; Experiential Learning; Prentice Hall; USA; 1984.
3 Ler em ‘A gestão estratégica do capital intelectual’
4 Autopoiesis (do grego poien: fazer, gerar).
5 Demo, Pedro; Complexidade e Aprendizagem; Ed. Atlas; 2002
6 Maturana, Humberto; Cognição, ciência e vida cotidiana; Editora UFMG; 2001.
7 Mingers, J; Self-production systems; Plenum Books; USA; 1995 – para quem quer aprofundar as questões neurológicas desenvolvidas por Maturana e Varela.
8 Gestão da mudança; Bauer, R; Editora Atlas; 1998.


Nota: Artigo publicado originalmente no antigo site do Instituto Pieron.

 

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